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Agricultura familiar e ciência cidadã: o campo como lugar de saber e economia social

No Dia Mundial da Agricultura Familiar (25/7), experiências como o CaipiratechLAB e o trabalho do Cemaden mostram como produtores, instituições e cientistas constroem soluções com dados, diálogo e corresponsabilidade

Por Alice Lira Lima, com apoio de Joana Giacomassa, Karen Sailer e Luan Alves | Foto de destaque: Kamay/Silo

Meio hectare de terra? Isso é coisa pra caramba!”. A frase, dita quase por acaso por um amigo em uma conversa em 2015, ficou na cabeça da engenheira florestal Evelyn Miranda. Na época, ela vivia em Florianópolis (SC), mas aquele pedaço de terra ocioso no sítio da família, no interior do Rio de Janeiro, equivalente a metade de um campo de futebol, poderia se transformar em uma vida com novos propósitos. E assim aconteceu. Ela decidiu voltar ao local e, junto de Rômulo, seu companheiro, plantou as raízes do que se tornaria a Meio Hectare Produção Orgânica, que é um projeto de cultivo e também um modo de vida.

O que começou como um retorno afetivo virou também um gesto político em prol da coletividade. Atualmente, Evelyn participa de feiras orgânicas, entrega cestas agroecológicas, comercializa alimentos e até panos de cozinha com arte rústica. Assim, fortalece a cultura camponesa e faz parte de redes como o CaipiratechLAB, projeto da organização da sociedade civil Silo – Arte e Latitude Rural, organização que atua na intersecção entre arte, ciência e tecnologia, com sede na Serrinha do Alambari (RJ). 

Para Evelyn, a vida no campo faz mais sentido, mas ela lembra que não pode ser romantizada, pois são muitos os desafios mesmo em lugares com potencial. “Todo dia é segunda-feira”, brinca. Sobre essas dificuldades, ela compartilha que, no ano passado, “não houve inverno”. Essa estiagem afetou a produção e gerou um grande impacto financeiro.

“Além do cultivo, a gente precisa de manutenção em tudo: como fazer para a água chegar aqui, por exemplo. É uma dinâmica cansativa. Há ainda a necessidade de mão de obra, que falta, e a questão das mudanças climáticas”, explica a produtora. Reunindo potencialidades e esses desafios, para ela, “é uma honra contar com a Silo, que cria e desenvolve atividades muito inovadoras, interessantes e diferentes do que se espera”

Apresentação da Meio Hectare em um encontro da Silo | Foto: Mariana/Silo

Entre essas atividades, o CaipiratechLAB tem sido a ajuda essencial para construir uma rede necessária, com pessoas de vários lugares, que passam a se conhecer e a se conectar por meio desse ponto de convergência.  Os produtores se unem, compartilham e também pensam em soluções, tanto internas quanto a partir de propostas externas.

A iniciativa da Silo tem como base a ciência cidadã, campo da produção científica que se constrói com a participação ativa de pessoas que observam, registram e interpretam a realidade junto de pesquisadores em suas respectivas áreas. “A pergunta que nos move é: ‘de onde vem o alimento que você consome?’ Saber isso é ter corresponsabilidade. É reconhecer que quem planta também quer trabalhar de uma forma digna, receber confiança e oportunidade”, afirma Cinthia Mendonça, artista, pesquisadora e diretora da Silo. Além disso, Cinthia integra a Linha 1 – Coprodução e Engajamento Social em Iniciativas de Ciência Cidadã do Instituto Nacional de Ciência Cidadã (INCC).

Cinthia Mendonça, diretora da Silo | Foto: Kamay/Silo

Quando se pensa em ciência cidadã voltada à agricultura familiar, quem produz não deve ser visto como objeto de estudo, mas parceiro e protagonista do conhecimento. “Não é transferência de conhecimento, é troca, com histórias, conversas, saberes. Para isso, movemos alianças improváveis, com artistas, desenvolvedores, camponeses e parceiros”, complementa Cinthia. 

“A inteligência da plataforma está na simplicidade”

O CaipiratechLAB nasceu da escuta e da própria história de Cinthia, que é filha de camponeses e voltou ao lugar onde cresceu após estudar Artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em uma de suas frentes, o projeto conecta mais de 200 agricultores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, de uma região de montanhas, que atuam em um raio de 100 km, a consumidores locais por meio de uma plataforma digital simples, pensada a partir da realidade de quem vive o dia a dia da produção rural.

Em 2024, a ferramenta iniciou a fase de testes. “A inteligência da ferramenta está na simplicidade dela. Fomos no mais arrojado: um arranjo produtivo digital com cadeia curta de distribuição. Não inventamos nada, organizamos o que já existe”, explica Cinthia. A plataforma permite que os produtores tenham seus dados fixos e vendam diretamente a famílias, mercadinhos e restaurantes, sem a sobrecarga de atualizar redes sociais ou lidar com ferramentas complexas.

O CaipiratechLAB é também uma escola viva. Os cursos, construídos com base no que os próprios camponeses querem aprender, abordam temas como agroecologia, finanças, cerâmica, fotografia com celular, aposentadoria rural e audiovisual. A roteirista Rosane Svartman, autora de novelas de sucesso como Vai na Fé, Dona de Mim e Totalmente Demais, por exemplo, já foi uma das convidadas. “Nesse espaço, os professores estudam os alunos. Tudo é muito personificado. O relacionamento e trocas entre cientistas e profissionais de mercado é muito rico, mas precisa ser desenhado estrategicamente para que seja proveitoso, natural e sem constrangimentos”, contextualiza Cinthia.

Uma das ações do projeto é a vivência com as famílias na sede da Silo, na Serrinha do Alambari. Durante quatro dias, como encerramento de cursos, camponeses, artistas e cientistas partilham momentos de aprendizado, refeições, histórias e saberes. Essa convivência é parte da metodologia que, como comenta Cinthia, faz ‘match’ de necessidades.

Vivência com as famílias faz parte da metodologia | Foto: Mariana/Silo

O projeto inverte a lógica dominante da educação e da ciência, que pressupõe que é preciso ir para a cidade para aprender. No CaipiratechLAB, o saber circula até o campo, e algo muito maior cresce, amadurece e ganha seus destinos a partir dali. Para que exista dessa maneira, a Silo conta com parceiros que acreditam na proposta e se somam a ela, como o Instituto Serrapilheira, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), universidades, consulados de países, iniciativa privada e outras iniciativas.

A ciência cidadã, nesse modelo, se baseia na troca. “O camponês quer entender ‘por que tem menos abelha?’, ‘o que está mudando na vegetação?’. A gente convida referências para pensar isso juntos. E também pergunta: ‘o que vocês querem aprender?’”, conta Cinthia. A socialização, o cuidado com a terra, a economia solidária e o trabalho – como um meio de vida que faz sentido para o que é ser camponês. 

Sobre o termo camponês, Cinthia reforça a importância de retomá-lo, uma vez que a sua imagem sofreu apagamento e danos, por exemplo, durante a Ditadura Militar, como mostram estudos como o artigo de Ricardo José Braga Amaral de Brito intitulado “A luta camponesa e a repressão durante a Ditadura Empresarial-Militar (1964 – 1985)”. A Comissão Nacional da Verdade (CNV), que funcionou de 2012 a 2014 e investigou crimes cometidos de 1964 a 1988, reconheceu no documento final que 41 camponeses estavam entre os 434 mortos e desaparecidos. No entanto, um estudo realizado pelo pesquisador e colaborador da Universidade de Brasília (UnB) Gilney Viana aponta que 1.654 camponeses foram mortos ou desapareceram nesse período.

A força da agricultura familiar no Brasil

O Dia Mundial da Agricultura Familiar, celebrado em 25 de julho, reconhece a importância desse modelo para a economia, o meio ambiente e a soberania alimentar. No Brasil, segundo o Censo Agropecuário do IBGE (2017), 77% dos estabelecimentos agropecuários são de base familiar, empregam mais de 10 milhões de pessoas (67% da mão de obra rural) e respondem por 23% do valor total da produção.

Esse é um modo de viver e se relacionar com a terra, presente em 90% dos pequenos municípios brasileiros. Da agricultura familiar chegam à mesa dos brasileiros alimentos como feijão, arroz, mandioca, hortaliças, leite, frutas e muito mais. 

“Feirinha da Silo” | Foto: Kamay/Silo

Além de garantir a segurança alimentar, a agricultura familiar tem um papel importante na mitigação das mudanças climáticas. Em contraste com os modelos intensivos de produção, é comum que agricultores familiares adotem práticas agroecológicas, com manejo sustentável dos recursos naturais, preservação da biodiversidade e cuidado com o solo. Esse modo de produção contribui para a redução das emissões de gases de efeito estufa e torna os sistemas agrícolas mais resilientes a eventos climáticos extremos.

 

Monitoramento e garantia de acessos

A ciência cidadã também está presente em órgãos como o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que desde 2015 atua no Programa Garantia-Safra, gerando dados que ajudam na formulação e garantia de acesso a políticas públicas voltadas aos agricultores mais vulneráveis. Um desses passos é o desenvolvimento e divulgação do Boletim de Monitoramento de Impactos de Seca na Agricultura Familiar, que leva em consideração a ameaça meteorológica e a vulnerabilidade de cada local.

“Nosso foco é sempre quem fica à sombra da grande produção”, afirma Ana Paula Cunha, coordenadora de Relações Institucionais e pesquisadora em secas no Cemaden. A agricultura familiar é mais vulnerável aos eventos climáticos, então o Cemaden, que surgiu para pesquisas voltadas ao semiárido brasileiro, foca nos mapas de risco, boletins de seca e ferramentas específicas cujos dados orientam decisões nos municípios e políticas públicas.

Um dos projetos desenvolvidos pelo Cemaden foi o Seca-Wiki, plataforma participativa que permitia a agricultores e técnicos registrarem, por celular e de forma simplificada, dados sobre chuvas, manejo do solo e impacto da seca nas plantações. “Eles nos ajudam a entender o que acontece em campo e, com isso, conseguimos ajustar nossas análises e alertas”, diz Ana Paula.

Por meio desse projeto, 500 equipamentos de monitoramento foram viabilizados e estão instalados em áreas mapeadas. Apesar de o aplicativo não estar mais ativo, os dados gerados continuam sendo utilizados para orientar ações de órgãos como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)  e do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). É um trabalho técnico, mas a escuta também é fundamental. “Para nós, que somos órgão de monitoramento, é essencial ouvi-los, principalmente para entender se o que a gente indica condiz com a realidade no campo”, reforça Ana Paula.

O índice de vulnerabilidade considera fatores como acesso à água, renda, participação em cooperativas e dados do Censo Agropecuário. “A nossa contribuição direta para o agricultor é via políticas públicas. Para que aquele que perdeu receba o benefício. A nossa ação é para que eles sejam assistidos, quando de fato precisarem”, explica Ana Paula.

Para que o trabalho do Cemaden aconteça, há a participação de parceiros como universidades, a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O Centro atua em relação à agricultura familiar de Norte a Sul, mas nem todas as regiões são afetadas por extremos.

Ana Paula relata ainda que, há dez anos, os municípios mais afetados com as secas estavam muito concentrados nas regiões Nordeste e Norte do país, porém, principalmente devido às mudanças climáticas, o cenário tem mudado e secas e estiagens são registradas em outras localidades, como nos estados do Amazonas, Rio Grande do Sul e São Paulo, por exemplo. Por isso, ela considera importante uma revisão das políticas públicas voltadas ao tema.

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